pARTE iii
Assim que saí da cama, Ynkö me conduziu por um dos diversos corredores que cercavam o Salão da Singularidade, levando até uma modesta antessala. O cômodo possuía uma mesa de madeira com um tampo de vidro e duas cadeiras acolchoadas, além de uma outra porta que parecia uma saída.
Ao entramos, reparei em um objeto reluzente no centro da mesa. À primeira vista lembrava um smartphone, mas diferente dos que eu já conhecia, este tinha seu acabamento em um belíssimo mármore negro.
— Isto é um tokenpad. Acreditamos que é a melhor maneira para alguém da sua Era começar — disse Ynkö.
Ao pegar o aparelho senti um misto de admiração e perplexidade. O que eu pensava ser mármore era na verdade algo como uma levíssima fibra de carbono texturizada, extremamente robusta. A tela por sua vez parecia ser vidro, mas respondia ao toque com uma sensação suave e um pouco umedecida, e mesmo com o passar dos dedos mantinha-se sempre limpa e cristalina.
Quando me perguntei onde ficaria o botão de ligar, o tokenpad se antecipou e despertou por conta própria, emitindo uma discreta luz grafite que preencheu toda a tela. Sobre o fundo iluminado surgiu uma interface minimalista, na qual os aplicativos disponíveis se apresentaram um a um, em curtas animações de introdução.
Reconheci de imediato algumas ferramentas tradicionais da minha Era, tais como GPS, mensageria, comunicação por voz, calendário, e ainda, o diário pessoal no qual comecei a registrar estas vivências.
O último aplicativo a ser apresentado foi o de “Tutoriais”. Curioso, abri o aplicativo e constatei que ele apresentava apenas uma única opção, chamada “Tutoriais do Intercambista da Primeira Era - #1 - Fique Calmo e Abra a Mente".
Eu já ia começar a espiar o tutorial quando Ynkö me interrompeu, pedindo que eu abrisse um aplicativo chamado “Carteira”. Achei estranho, mas ao atender o pedido do meu novo amigo tive a grata surpresa de ver que a tal carteira não estava vazia! Ali apareciam várias siglas diferentes, cada uma acompanhada por um número que indicava a sua respectiva quantia. A lista era tão grande que precisei rolar a interface algumas vezes até encontrar o final.
— O que é isso tudo? É dinheiro? — tive que perguntar.
— Não exatamente, Namascoin. Estes são tokens; eles fazem parte de tudo e estão em todos os lugares. Sei que podem parecer muitos para você, mas inicialmente quero lhe mostrar apenas alguns que, não por acaso, são muito parecidos com o que você pensa sobre dinheiro. Filtre a sua lista por “token utilitário”.
Voltei a olhar para a tela do tokenpad e encontrei o clássico botão de lupa. Pressionei o botão esperando que um teclado aparecesse, mas ao invés disso, o botão apenas brilhava sob o contorno do meu dedo.
— E agora, vai me dizer que eu só preciso falar? — perguntei animado.
— Melhor do que isso... você só precisa pensar.
Fiquei na dúvida se era uma piada, mas como não custava tentar, mantive o botão pressionado e pensei nas palavras “token utilitário”. O resultado foi instantâneo e assombroso, com o aparelho destacando um pequeno conjunto de siglas.
— Como isso é possível, Ynkö? — balbuciei.
— Não é tão simples, mas por agora vamos considerar que o tokenpad compreende o que você sente e pensa.
Olhei desconfiado para o aparelho em minhas mãos, onde agora encontravam-se apenas três tokens: BED, FOOD e SELF.
Segundo Ynkö, essa era a carteira básica de qualquer Intercambista. Os tokens serviam para cobrir custos de hospedagem (BED), alimentação (FOOD) e gastos pessoais (SELF). De fato, pareciam dinheiro, mas cada um só poderia ser utilizado para compras de sua própria categoria.
Ao lado de cada um destes tokens, porém, tinha uma observação que me deixou curioso.
— Ynkö, o que quer dizer isto: “renovável”?
— É exatamente o que diz, Namascoin. Os tokens BED e FOOD são renovados todos os dias, e os tokens SELF a cada semana. Assim, durante sua estada conosco, você sempre terá o que comer, onde dormir, e o que fazer.
“Dinheiro renovável” era um conceito estranho: acordar com a mesma quantia na carteira, todos os dias, mas sem poder acumulá-la de um dia para o outro... ou toda semana, ou mês, ou o que fosse. Quanto mais pensava sobre o assunto, mais eu chegava a uma conclusão.
— É impressão minha, ou isso se parece muito com...
— Com um programa de renda básica! — Ynkö exclamou, me interrompendo.
Sim, era justamente o que eu pensava. Só não entendia o motivo de se fornecer o dinheiro — na verdade, os tokens — de uma maneira renovável como aquela. Me parecia que o sistema provocaria muito desperdício.
— O que acontece com os tokens que não são gastos antes da sua renovação? — questionei.
— É simples. Eles expiram, o que significa que serão sacados da carteira e transferidos para fundos sociais.
Aquilo era muito estranho; pensei se afinal aquele “dinheiro” era realmente meu. Em seguida, me ocorreu uma crítica que fiz questão de compartilhar:
— Mas Ynkö, isso aqui parece incentivar muito o consumismo! Pense comigo... já que não dá para acumular os tokens a cada dia ou semana, o melhor seria gastar tudo, o tempo todo, para não perder nada.
Meu jovem amigo achou o raciocínio muito curioso:
— “Gastar tudo, o tempo todo, para não perder nada” ...isso é a cara da Primeira Era!
Eu havia falado sem pensar; confesso que quando ouvi a frase de volta ela soou muito estranha.
— Lembre-se que os tokens expirados não são destruídos, mas transferidos para fundos sociais. Metade deles volta para o programa “Fica de Boa”, que mantém a nossa renda básica universal, e metade volta para o programa “Tamo Junto”, um fundo de resposta para o caso de catástrofes. — Ynkö elaborou.
“Tamo Junto” se chamava de fato “Universa Veraque”, um fundo naturalmente alimentado pelo excesso de riqueza disponível em tempos de prosperidade, e que servia o propósito de garantir recursos capazes de mitigar os efeitos de calamidades em tempos difíceis.
Já o programa “Fica de Boa” era na verdade o apelido para o fundo “Fide Liberta Veri”, que, diferente do que eu imaginava para um sistema de renda básica, oferecia diversos planos de renda onde cada indivíduo podia escolher — isso mesmo, escolher — uma opção preferida, em função da sua idade e do estilo de vida que desejasse.
Até ali a explicação já era incrível, mas ainda não havia terminado.
— Quando os cidadãos exercem atividades remuneradas, cuja renda é acumulável, eles ainda assim continuam recebendo a renda básica de sua escolha. Quando isso acontece, é comum que cada um deixe os seus tokens renováveis expirarem sempre que possível, colaborando assim com o fortalecimento da sociedade.
“O que você vê como perda individual; nós vemos como enriquecimento coletivo.”
Isso era um contraste gritante com a realidade que eu estava acostumado. Pensei comigo mesmo que, apesar de poder me considerar “livre”, a verdade é que sempre me senti continuamente forçado a trabalhar e a viver em agonia. Acabei pensando sobre toda a desigualdade do meu tempo, e me ocorreu que várias das “grandes mentes” da Primeira Era enxergariam a explicação de Ynkö com um viés bem diferente.
— Ynkö, não sei como são as coisas por aqui, mas algumas pessoas da minha Era diriam que vocês são comunistas, e que isso não é nada bom.
— Comunistas? Você já viu algum sistema comunista onde as pessoas podem escolher viver da maneira que preferem, e ainda ganham uma renda básica especialmente pensada para isso?
Era difícil questionar a linha de raciocínio do jovem orientador. Dadas as minhas óbvias limitações nessa área, a próxima pergunta foi ainda mais previsível:
— Então vocês são capitalistas?
Ynkö esboçou visível desgosto. De maneira teatral, trouxe sua mão esquerda ao topo da testa, em um exagerado facepalm.
— O que você entende como o seu “capitalismo” nós hoje estudamos como “Capitalose Competitiva Cumulativa”, um termo sombrio que pode ser atribuído tanto à grave doença mental coletiva que assola ao seu tempo, como ao obsoleto sistema econômico derivado dela.
— Uau... mas então vocês são o quê? — perguntei.
— Somos o que somos, cada um em si, e todos no todo. Você ainda vai entender isso um dia, mas para que até lá não fique sem resposta, aqui vai uma simplificação didática: somos humanistas e descentralistas; o primeiro porque é o certo, e o segundo por ser a maneira mais eficiente de se alcançar o primeiro.
Aquele foi um dos poucos momentos em que senti alguma familiaridade.
— Ah, sim... eu sei o que é “humanismo”! — exclamei.
A sensação, porém, não durou muito tempo. Bastou olhar para a expressão de Ynkö e ouvir a sua resposta:
— Esse é o problema das simplificações. O que estamos chamando de “humanismo” aqui não é apenas um conjunto de princípios que podem ser obtidos através de um livro, mas sim o próprio e livre entendimento do que nos faz “humanos”, considerando várias dimensões diferentes
— Talvez eu não saiba o que é, no final das contas… — pensei em voz alta.
Ynkö então fez uma pequena pausa dramática, e prosseguiu com uma atuação solene:
— Como diria o meu amigo Hiann: “É a visão que guia nossos passos rumo ao desconhecido, mas que não deixa de evoluir conosco uma vez que chegamos lá”.
Eu sentia muita segurança e autoridade em Ynkö, o que era surpreendente para alguém tão jovem. Quanto mais eu o ouvia, maior parecia o abismo entre a humanidade que eu conhecia e aquela que estava começando a conhecer.
Foi apenas então que me ocorreu uma questão extremamente curiosa:
— Ynkö, o quanto exatamente eu viajei para o futuro?