pARTE ii
Ao perceber que não tinha qualquer noção de onde estava, senti brotar um instinto fulminante, mas o fato é que nunca cheguei a reagir. O impulso natural do susto fora interrompido por um oportuno toque no ombro, seguido por uma voz calma e jovial:
— Bem-vindo a Σthos, filho da Primeira Era. Me chamo Ynkö, e está tudo bem.
Apenas um toque, um só toque, e o que antes era medo agora dava lugar a uma implacável serenidade. Mais calmo, e também curioso, decidi sentar para avaliar o que estava acontecendo.
Obviamente reparei primeiro em Ynkö — um simpático menino em torno dos seus quinze anos. Acomodado em uma poltrona ao meu lado, apresentava uma aparência enérgica e esguia; seu olhar, apesar de contente e tranquilo, era misteriosamente maduro para a sua idade.
Logo em seguida, reparei que havia outras camas além da minha, todas elas formando um grande círculo no centro de um amplo salão de madeira. O ambiente, apesar de ser construído com materiais rústicos, era espaçoso, bonito e rigorosamente bem planejado. As grandes colunas do salão eram um destaque especial, cobertas por ricos ornamentos que, entalhados à mão, evocavam as virtudes da habilidade e da paciência.
Ao olhar para cima me surpreendi com um teto incrivelmente alto, estruturado em padrões geométricos bastante complexos. Assim que tentei considerar o como ou o porquê daquilo, no entanto, fui atingido por um zumbido na orelha e uma intensa vertigem. Meio tonto, esfreguei o rosto até me recuperar e achei mais seguro limitar minhas observações ao que se encontrava mais próximo do chão.
Eram onze camas no total, onde outras pessoas pareciam estar despertando, assim como eu. Ao lado de cada cama era possível observar um cuidador pessoal, muito embora nem todos fossem jovens como Ynkö; alguns deles, ainda, pareciam estar reencontrando bons amigos entre os que despertavam, preenchendo o salão com um agradável clima de confraternização.
— Onde estou, ou… onde estamos? — Foi o melhor que consegui perguntar.
Ynkö abriu um grande sorriso e respondeu:
— Você está em Σthos. Nós o retiramos do seu próprio espaço-tempo para convidá-lo a participar do nosso programa de intercâmbio dimensional!
Sei que isso deveria ter me assustado, ou pelo menos provocado algum tipo de receio, mas não foi assim. Na verdade, Ynkö era tão gentil e o ambiente era tão acolhedor que eu sentia mais curiosidade do que qualquer outra coisa.
“Será que eu morri?” — pensei comigo mesmo.
Era até uma boa hipótese, mas aí teríamos um caso de emigração, não de intercâmbio.
“E se eu acordei de um sonho, dentro de outro sonho?” — foi a segunda ideia.
Essa hipótese tinha mais potencial, mas também não servia. Por mais estranhos que fossem aqueles acontecimentos, eu sentia que eles eram reais; ainda por cima, e muito infelizmente, a minha clássica dor nas costas já estava de volta.
Ynkö parecia se divertir às custas da minha confusão. Esperou o máximo que pôde, até que não conseguiu mais se conter e soltou aos risos:
— Vem cá, você está mesmo tentando entender tudo isso sozinho?
Seu tom de voz era brincalhão e carinhoso, mas a provocação caiu como uma luva.
— Nossa, não sei onde estava com a cabeça. Uma pergunta, por favor. Isto é uma abdução? Ou... sei lá, estamos no plano astral?
A resposta veio logo em seguida:
— Bom... na verdade foram duas perguntas, mas nenhuma delas vai te ajudar muito. De qualquer jeito, a primeira resposta é sim, mas não como você imagina; e a segunda resposta é não, mas “não” de um jeito que você não imagina.
Me pareceu que Ynkö gostava de jogos mentais. Pedi ainda que repetisse a frase algumas vezes, mas acabei desistindo. Após perceber que eu não tinha condições de acompanhá-lo, o jovem se ofereceu para ajudar:
— Vamos lá, o que você realmente quer saber é se a sua vida normal estará lhe esperando ao final do intercâmbio, do mesmo jeito que você deixou.
Admito que fiquei impressionado. Eu mesmo não sabia, mas era exatamente aquilo que eu queria saber. Certo do que havia dito, e sem esperar qualquer confirmação minha, Ynkö prosseguiu:
— Relaxe, sua volta à "normalidade" está garantida, mas agora devemos passar o básico.
Esclareceu então que, apesar das brincadeiras, o programa de intercâmbio era real. Eu, um habitante da “Primeira Era”, havia acabado de ser transportado para a “Quinta Era”; mais precisamente para o Salão da Singularidade: o portal de espaço-tempo da cidade de Σthos.
— Apesar de termos todo o tempo do mundo, existem algumas coisas que não podem esperar. Sendo assim, escute bem: duas perguntas você desperdiçou, então duas mais você pode fazer; depois terá que decidir. Caso aceite participar do nosso programa, a sua única obrigação será realizá-lo por completo. Ao final, você será devolvido para seu próprio espaço-tempo, exatamente onde estava antes. Caso decline você irá retornar agora, do mesmo jeito que chegou, mas sem qualquer lembrança do ocorrido.
Então Ynkö realmente gostava de jogos! O que ele não sabia, porém, é que tinha esbarrado com um candidato que compartilhava do seu gosto, e que naquele momento não só estava plenamente acordado, como também já tinha entendido a regra mais importante do jogo: “perguntas mal feitas levam a respostas inúteis”.
Após pensar por alguns minutos em qual estratégia adotar, decidi que minha primeira pergunta seria um ataque frontal:
— Qual o motivo deste programa de intercâmbio?
Ynkö sorriu, deixando claro que estava um passo à minha frente.
— Este programa serve para que seres humanos de diferentes eras possam compartilhar experiências entre si, aprendendo e crescendo uns com os outros.
Que fracasso, a resposta era tão óbvia! Meio nervoso, ainda tentei corrigir:
— Não, não... eu quis dizer o que isso tem a ver comigo... por quê “eu“ fui selecionado?
— Essa é a sua segunda pergunta? — Ynkö me lembrou.
Silenciei, indicando que não com a cabeça, timidamente. Meu plano tinha ido por água abaixo. Só havia mais uma chance, e eu precisava pensar melhor; precisava encontrar a pergunta principal, aquela que seria capaz de me ajudar a decidir.
Confesso que me tomou bastante tempo, mas enfim acabei percebendo que no fundo eu já tinha me decidido, e que não precisava de qualquer resposta. A última pergunta, nesse caso, era apenas uma elegante peça do jogo: não precisava ser feita, nem precisava ser respondida, só precisava ser procurada.
Senti uma grande clareza interior, e grato pela dinâmica, decidi encerrá-la à altura do jovem que a conduziu:
— Muito bem, como faço o “check-in”?
Ynkö parou por um segundo, incapaz de disfarçar sua reação de surpresa. Ligeiro, porém, logo chacoalhou a cabeça e se recompôs, prosseguindo com entusiasmo:
— Gostei de você! O “check-in” é muito simples: basta me dizer o seu nome. Eu então irei registrá-lo no Ábaco, e pronto, seu intercâmbio será oficialmente iniciado!
Empolgado pelo momento, e sem qualquer ideia do que um ábaco faria nesse caso, afirmei com vontade:
— Meu nome é Nahmas Connor!
Não era o que eu esperava, mas ao ouvir a resposta Ynkö reagiu com uma expressão de desgosto; começou a resmungar consigo mesmo que o nome não era “bom o suficiente”, já que era “tão emocionante quanto um copo de água morna”. Eu estava prestes a lembrá-lo de que podia ouvir tudo quando o jovem parou, arregalou os olhos e, com a expressão de quem acabou de ter uma epifania, disse:
— Namascoin!
— Namascoin? — retruquei, hesitante.
Ynkö então se inclinou para o lado, na direção de um curioso totem de pedra que terminava na altura dos braços de sua poltrona. Pousou a mão sobre uma placa de vidro presa ao topo do artefato, e balançando a cabeça em sinal afirmativo, ditou:
— Aham! NA...MAS….COIN.
A placa então brilhou em violeta, e dela correram fachos de luz da mesma cor que percorreram os veios do totem de rocha, descendo para baixo do chão. Não era preciso pensar muito — tudo indicava que eu havia acabado de ser registrado no programa de intercâmbio como “Namascoin”!
— Mas… como assim, Namascoin? — retruquei de novo, ainda mais angustiado.
Ynkö então se levantou, pousou a mão em meu ombro, e disse:
— Acredite, meu amigo, é perfeito! Você agora é oficialmente um Intercambista. Venha comigo, temos muito o que fazer.